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Tribuna: Racismo Estrutural

Tribuna: Racismo Estrutural
Por Paulo Godoy Júnior, Oficial do Ministério Público, lotado na Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

Introdução (provocações iniciais):

Logo após a abolição da escravatura de 1888, em um breve vôo histórico no Estudo das Escolas Penais do Brasil, encontramos a concepção racista de Nina Rodrigues que atribuía como um dos fatores de inferioridade do Brasil como um povo, a Raça Negra no Brasil. Em um ensaio em 1894, chegou a defender a existência de dois códigos criminais distintos. Acreditava esse autor, médico influenciado pela Escola Positivista Lombrosiana, que em face da miscigenação e fragilidades, a população negra acabaria no Brasil. Enaltecia o fato de uma nação branca, forte e poderosa, provavelmente de origem teutônica, que estava se constituindo nos estados do Sul, onde o clima e a civilização eliminariam a raça negra.

O Hino da Proclamação da República de 1889 seria precursor do Direito ao Esquecimento no Brasil? O Direito ao Esquecimento foi debatido nos últimos tempos nos Tribunais Superiores, vejamos partes da letra desse hino:

“Liberdade! Liberdade!
Abre as asas sobre nós
Das lutas na tempestade
Dá que ouçamos tua voz
Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre País
Hoje o rubro lampejo da aurora
Acha irmãos, não tiranos hostis
Somos todos iguais! Ao futuro
Saberemos, unidos, levar
Nosso augusto estandarte que, puro
Brilha, ovante, da Pátria no altar!

Não há dúvida que em algum momento da nossa história, pós-abolição, houve uma tentativa de “branqueamento” da população brasileira, tendo em vista a vinda de diversos grupos de imigrantes para o Brasil.

Em relação ao tema título do webinar de hoje podemos falar que:

Existem três concepções de racismo: individualista; institucional e estrutural. Vamos nos ater mais à concepção estrutural, mas fazendo remições à institucional, obviamente. Por conta disto, é cediço que as instituições reproduzem as condições para o estabelecimento e a manutenção da ordem social.

Segundo o professor Silvio Almeida, é possível falar de um racismo institucional, pois significa que a imposição de regras e padrões racistas por parte da instituição é de alguma maneira vinculada a ordem social que ela visa resguardar. As instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos. As instituições são racistas porque a sociedade é racista.

Racismo Estrutural:

Em uma sociedade em que o Racismo está presente na nossa vida cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como normais em toda sociedade. É chamada naturalização do racismo.

O racismo é inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo é por meio de implementação de práticas antirracistas efetivas. Assim, é dever do Ministério Público que após a CF de 1988, teve a sua configuração alçada à promoção de indução de políticas públicas, adotar de forma interna também assegurando, conforme o professor Silvio Almeida: a) promoção a igualdade e a diversidade em suas relações internas e com o público externo; b) remover os obstáculos para ascensão de minorias em posições de direção e prestígio na instituição; c) manter espaço permanentes de debates e revisão das práticas institucionais; e d) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero.

O Mito da Democracia Racial:

“No Brasil não existe racismo”. “Vivemos uma democracia racial”, segundo aqueles que incorporam o discurso de que todas as vidas importam. Ou ainda, devemos ter uma consciência humana, muitos usando a foto de Morgan Freemann. É evidente que todas as vidas importam! Não se trata disto! As vidas negras também importam! É disto que se está falando! Esse imaginário é facilmente rebatido com os índices de criminalidade (vítimas, população carcerária). O último levantamento apurado é de que 75,5% das vítimas de assassinato no Brasil são negras. Cabe referir ainda que 61,6% dos detentos no Brasil são negros e pardos. A maior parte dos feminicídios é de mulheres negras. O Racismo velado causa danos terríveis e assustam muito.

Mas e a meritocracia? Diriam uns. A chamada meritocracia se manifesta por meio de mecanismos institucionais, como processos seletivos das universidades e concursos públicos que só acentuam a desigualdade racial, mesmo nos sistemas de ensino públicos e universalizados, pois os cargos de prestígio no setor público (carreiras de elite) associam competência e mérito das condições como branquitude e masculinidade, etc;

No Brasil, a negação do racismo e a ideologia da democracia racial sustentam esse discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa é da condição das próprias pessoas negras que eventualmente, não fizeram o que estava ao seu alcance. Isso só acentua e avaliza a miséria e a violência, o que dificulta sobremaneira a tomada de medidas efetivas contra a discriminação racial. Para o professor Silvio Almeida, no contexto brasileiro, o discurso da meritocracia é altamente racista, uma vez que promove a conformação ideológica dos indivíduos à desigualdade racial.

Façamos um exercício. Observemos as nossas rodas de amigos, escolas dos filhos, turma do futebol, áreas comuns dos condomínios em que vivemos. Podemos observar o restaurante das Torres do MP. Claro que hoje é mais difícil por conta da pandemia. Mas é extremamente perceptível que não vemos pessoas negras no nosso círculo, ou esse número é ínfimo. Observem os andares das promotorias de justiça?! Treine o seu olhar. Quantos amigos negros você têm? Quais os lugares eles ocupam?

Eu fiz esse exercício quase regressivo na minha infância até a vida adulta. A título de exemplo, na minha turma do Colégio de Aplicação, da UFRGS, escola pública, no final dos anos 80 e início dos anos 90, nas duas turmas de terceiro ano do ensino médio havia somente dois negros. Minha turma começou com quatro alunos negros, mas dos 33 que se formaram somente dois. Na outra turma, não havia negros. Imaginem nas escolas particulares da época?! Com a mudança para o Campus do Vale, talvez o quadro do Colégio de Aplicação tenha se alterado. No período que estudei, posso afirmar que apesar de público, federal, era uma escola com perfil elitista.

O fato de acharmos um ou outro caso, o que podemos chamar de casos fora da curva ou exceções, o fato é que o racismo estrutural está associado a desigualdade, sem dúvida. Ter estudado em boa escola, cursado uma boa universidade, sem bolsa ou qualquer tipo de crédito educativo, coloca-me como caso fora da curva, sem dúvida.

Merece menção o texto na intra publicado pela Dra. ngela Dal Pos “A cor da pele não deveria ser uma questão”, referiu que em 2019 foi questionada em um encontro de mulheres Procuradoras e Promotorias de Justiça do Ministério Público sobre a existência de Promotores de Justiça negras naquele ambiente. Assisti também a live realizada por ela com a Juíza Karen Luíse no canal do youtube. Referido evento trouxe relatos importantes que nos faz refletir muito sobre o assunto.

Onde se insere o Lugar de Fala? Só o negro pode falar sobre racismo? Como podemos pensar criticamente o assunto? Todo mundo deve discutir. A pessoa branca pode e deve pensar a situação racial a partir da sua localização social. Representatividade é outra questão. Devemos entender a sociedade em que vivemos, porque sou mais privilegiado? Se sentir desconfortável faz parte da mudança. Devemos refletir sobre os privilégios. Por que o não vejo pessoas negras ao meu redor no meu bairro nobre? Podemos citar o Jardim Europa aqui no caso de Porto Alegre. Existem pessoas negras morando aqui? Ou estão trabalhando nos serviços dos condomínios, varrição de rua, enfim. Façam como eu disse antes esse exercício ao seu redor.

E essa tal branquitude? Podemos falar disto? Modelo de construção histórico criado pelos brancos. Existe “racismo reverso”? Claro que não! Quem foi escravizado no Brasil? Quem criou a segregação racial nos Estados Unidos? Quem criou o Aparheid na África do Sul?

ÚLTIMO ponto: a atuação dos Poderes

Na última semana, a Assembleia Legislativa do Estado do RS aprovou o PL para reserva de cotas no âmbito do Poder Judiciário do RS. Vale lembrar que o Judiciário Gaúcho já vinha realizando certames para carreira da magistratura e servidores com reserva de cotas cumprindo Resolução do CNJ.

Cumpre destacar que no âmbito do Tribunal de Justiça do RS foi instituído o Comitê para Equidade de Gênero e de Raça, sob a presidência da Juíza de Direito Karen Luíse, com atuação no Tribunal do Júri de Porto Alegre. Em 2017, segundo apontamentos, a magistratura gaúcha contava com 5 juízes negros de um total de 800 magistrados. Atualmente são 11 entre negros e pardos.

Segundo informações não oficiais, no âmbito do Ministério Público do RS, foi apontado o número de apenas dois membros na carreira de Promotor de Justiça.

É preciso de uma vez por todas romper com os grilhões do racismo estrutural! As Instituições Públicas escancaram o racismo estrutural, apresentando um número inexpressivo de servidores públicos negros e pardos. No Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, em pesquisa levantada pelo Sindicato dos Servidores, no ano de 2018, foi apurado um índice de apenas 2% de servidores que se declararam negros e 3,9% pardos. É preciso mudar esse quadro.

Abrimos em breve parêntese para referir que antes do incidente de constitucionalidade e ADI, ajuizada posteriormente pelo PGJ, contra a Lei Estadual n. 14.147/2012 em decorrência da expressão contida no artigo 1º da precitada lei “quaisquer dos Poderes”, e o conseqüente vício de iniciativa da AL/RS em relação o MP e Judiciário, nós tivemos dois concursos para servidores do quadro de serviços auxiliares do MP em 2013, com nomeações de candidatos aprovados pelo sistema de cotas (cargos secretários de diligências e agente administrativo). A partir dos certames seguintes, 2014 e 2016 para os mesmos cargos e outros, os editais foram laçados sem a previsão.

Já o XLIX concurso de ingresso à carreira do Ministério Público ainda suspenso por conta da pandemia, teve seu edital lançado com a previsão de 3 vagas com reserva para negros e pardos, em decorrência da determinação prevista na Resolução do CNMP 170/2017.

Registre-se que o PL 11 2018 que está em tramitação na Assembleia Legislativa do Estado, proposto pelo Procurador-Geral de Justiça que tem como escopo a reserva de vagas para negros para ingresso à Carreira do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e para provimento de cargos efetivos da Procuradoria-Geral de Justiça – serviços auxiliares do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, o que representaria um grande avanço no combate ao racismo estrutural. Referido PL teve o parecer, da Deputada Estadual Juliana Brizola, aprovado na CCJ, mas até a presente data encontra-se nessa comissão desde 06.03.2019. Houve pedido de preferência para votação e leitura articulado pelo Sindicato dos Servidores do Ministério Público do RS. Mas segundo informações, houve um pedido de vista pelo Deputado Estadual Zucco.

As cotas são essenciais? Sim! Mas não são suficientes. Não basta a existência de um negro em determinado setor, seja o MP, ou outro órgão público para achar que está resolvido o problema do Racismo Estrutural, como bem aponta a Djamila Ribeiro, a chamada idéia do negro único. O Racismo não se limita a representatividade. Ainda que essencial, a mera presença de pessoas negras e minorias em espaços de poder não significa que a instituição deixará de atuar de forma racista.

Encerramento. O samba enredo da Estação Primeira de Mangueira no ano que completou 100 anos a Abolição da Escravatura é fantástico! Vejamos parte da letra:

“Será que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será, oh, será
Que a lei áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu
Moço
Não se esqueça que o negro também
construiu
As riquezas do nosso Brasil

Pergunte ao criador
Quem pintou esta aquarela
Livre do açoite da senzala
Preso na miséria da favela

Sonhei
Sonhei que zumbi dos palmares voltou, ôô
A tristeza do negro acabou
Foi uma nova redenção

Senhor, oh, Senhor!
Eis a luta do bem contra o mal (contra o mal)
Que tanto sangue derramou
Contra o preconceito racial

O negro samba
O negro joga a capoeira
Ele é o rei na verde e rosa da Mangueira”