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Crônica: 2020 - O ano que não aconteceu

Crônica: 2020 - O ano que não aconteceu

Por Silvia Generali da Costa, psicóloga e assessora em saúde do SIMPE-RS


Tenho ouvido comentários como “este ano não está valendo”, ou “2020 está perdido”, “a vida só recomeça em 2021” ou ainda “continuo com a mesma idade porque o aniversário de 2020 não contou”.

A partir destas falas, proponho pensarmos os critérios que determinam, para cada um de nós, a validade de um período de tempo - como o ano de 2020, por exemplo.

Se o critério for de produtividade e rentabilidade, exceto para 42 bilionários no Brasil¹ e outros tantos no mundo que aumentaram suas fortunas, para os demais pobres mortais da classe trabalhadora, 2020 se perdeu mesmo.

Se a ideia predominante é a de que viver é viajar e se divertir em festejos coletivos, 2020 já era. Os que o fizeram, agiram de forma irresponsável consigo e com os outros e eu gostaria que fossem considerados como exceções (embora eu mesma duvide um pouco disso pela queda na taxa de isolamento social em Porto Alegre)².

Aproveitar o ano é ir às compras e passear em shoppings? Consumir às vezes sem necessidade? Se o critério de existência de um ano for esse, 2020 está definitivamente mal cotado.

A possibilidade de estar fisicamente próximo aos demais como critério de passagem do tempo também torna 2020 um fracasso. A regra do metro e meio ou dois metros de afastamento e o uso de máscaras nos impede daquele contato corpo a corpo o qual o brasileiro tanto aprecia.

Proponho aqui um critério que desagradará a muitos, porque afirma que todos os que fizeram aniversário em 2020 estão irremediavelmente mais velhos e que todos nós, sem exceção, não ficamos parados no tempo. Que critério seria esse? O amadurecimento.

Proponho este critério porque o amadurecimento acontece na medida em que o tempo passa - com ou sem isolamento - e pode até intensificar-se com as dificuldades, como a pandemia que enfrentamos.

Amadurecer é suportar o tédio, encarar a solidão, buscar realizações em pequenos acontecimentos do dia a dia, encontrar a solidariedade, a empatia, a união e a amizade das formas ao nosso alcance, sobretudo as virtuais.

Se você fez aniversário em 2020, você tem sim um ano a mais de compreensão sobre o que é a vida, seu sentido, seu valor, suas agruras e suas alegrias. E parte desta compreensão foi construída sobre as reflexões e as noites mal dormidas que o isolamento trouxe.

Se você perdeu alguém que ama para a covid-19, então sabe melhor do que ninguém o que significa a passagem dos dias em tempos de pandemia. É o elaborar das perdas, o aprender a despedir-se, o valorizar a vida e a presença. A partida de pessoas queridas e a chegada de bebês ao planeta provam que a existência segue. Quer afastemos o calendário de nossas vistas, quer encaremos sua incômoda presença.

Notas:

[1] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/07/27/patrimonio-dos-super-ricos-brasileiros-cresce-us-34-bilhoes-durante-a-pandemia-diz-oxfam.ghtml

[2] https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2020/07/porto-alegre-tem-terceiro-pior-indice-de-isolamento-social-desde-ultimo-decreto-ckcw3rfa7003i0147uose3o10.html