Tribuna: Um dia, uma criança

Últimas Notícias
Tribuna: Um dia, uma criança
Por Cláudio Fiorentino, assessor na Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Porto Alegre

O coração acelerava, as mãos suavam, os pensamentos em turbilhão. O momento tão aguardado, planejados os detalhes para tudo se desenrolar conforme ensaiado, treinado e declamado dez, cem, mil vezes, quiçá ainda mais?

O distante ano de 1993 não encerraria apenas um ciclo, o ensino medio, mas também colocaria à prova a superação (tentativa?) de sentimentos até então tidos como intransponíveis para quem se habituara a ter a timidez como fiel escudeira.

"Apresentação cultural de talentos", ou algo parecido, era o denominado evento cuja avaliação, se positiva, poderia representar o coroamento glorioso daquele ano. Ao contrário de tantos que enfrentariam o grande dia em apresentações em grupo, compartilhando a ansiedade e dissipando a vergonha, aquela linda poesia que desde a primeira vez que li e ouvi me impedia de trilhar o mesmo caminho. Sabia que seria único, inesquecível, inédito, seja lá qual fosse o resultado.

Nossa! Já estava no palco, tantos atentos e ansiosos olhares direcionados a um único alvo, o que estaria fazendo mesmo ali? Não havia mais o que refletir, era só seguir em frente.

Silêncio! Quando me apercebo, estava dominado pela sensibilidade de "Un jour, un enfant" ("Um dia, uma criança" - música em poesia, vencedora do Eurovision' 1969, interpretada por Frida Boccara), declamada em sua versão original e em Português. Quanta emoção!

Um dia nascerá, sobre três braços de lilás;
Que uma criança olhará como um livro de colorir;
O mundo ao seu redor será vazio, e é assim;
Que ele inventará a vida como sua primeira página;
Desenhando a forma de uma laranja,
Ele dará ao céu seu primeiro sol;
Desenhando o pássaro, ele inventará a flor;
Procurando o ruído da água, ele ouvirá o grito do coração;
Desenhando os braços de uma estrela,
A criança encontrará o caminho dos adultos;
Adultos que guardaram um olhar maravilhado,
Para a chuva de cada dia e para as rosas do amor.

Passados 27 anos, aquele dia manteve indeléveis suas lembranças. Recordações revividas intensamente em atuais momentos de introspecção, isolamento, recolhimento em nossos lares, tal qual crianças que a cada dia precisam redefinir o significado da vida, no livro de colorir, no formato de uma laranja, no sol, no pássaro, na flor, na água, no coração, nas estrelas. No caminho que, ora, estamos trilhando, redefinindo e ressignificando a chuva de cada dia e as rosas do amor.