Tribuna: Deus Mercado e suas Górgonas

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Tribuna: Deus Mercado e suas Górgonas
Por Nadia Latosinski do Amaral, Assessora Jurídica do MPRS.

É irrefutável a afirmação de que a Pandemia de Covid no Brasil está fora de controle. Em março, a Covid ceifou 66.868 brasileiros (1). Abril ainda não acabou, mas certamente quebrará o recorde (2). Falta de leitos, incompetência e descaso na aquisição de vacinas e insistência em tratamento precoce ineficaz são as principais causas.

Enquanto isso, supostamente preocupados com a economia, a maior parte dos governantes brinca nas gangorras do abre-e-fecha, sob o mantra de que “a economia não pode parar”. O prefeito da capital Gaúcha chegou a insinuar que as pessoas deveriam se sacrificar (sim, morrer) pela economia (3). Muitos empresários, ansiando pelo retorno normal das atividades, fazem verdadeiro desdém com a vida humana, apelando cruelmente para que deixemos o pessimismo de lado e passemos à vida normal. Claro, não podemos deixar uma “gripezinha” parar o país.

Nesse mesmo passo, as Igrejas, mais por questões financeiras do que fé e caridade, querem abrir a todo custo, sendo necessário que o STF fosse acionado (4) para cessar a insanidade em nome de Cristo (5). Sem falar na polêmica das escolas.

Há quem diga que o projeto governamental para a pandemia é matar mesmo. Reduzir a população, “cancelar CPFs”. Essa galera esquece que CPFs são consumidores e contribuintes. Além disso, ainda é incerto no meio científico quantas e quais serão as consequências da Covid no corpo daqueles que “sobreviverem”. Diversos efeitos colaterais têm aparecido, em perfis diferentes da população (6). Muitos adultos poderão ficar incapacitados para o trabalho, diminuindo a população economicamente ativa. Quem arcará com essa perda na economia? Assim como o tratamento precoce, esse projeto governamental é burro.

Para piorar o contexto que trago, o CENSO do IBGE foi cancelado (7). Assim, não teremos dados oficiais e governamentais do estrago que a falta de políticas públicas durante a pandemia, para sua erradicação, assim como da miséria e da pobreza, gerou. Providencial, já que ano que vem temos eleições. Por certo, o chefe de estado e de governo brasileiro não quer usar máscara na face, mas a máscara nos dados socioeconômicos é de uso obrigatório.

Mas há quem pesquise, há quem traga dados. E são tristes. Muito tristes. Assim como o macacão jeans, outra tendência dos anos 90 está de volta: a fome.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede PENSSAN, com apoio do Instituto Ibirapitanga e parceria de Action Aid Brasil, FES-Brasil e Oxfam Brasil (8), estima que 55,2% dos lares brasileiros, ou o correspondente a 116,8 milhões de pessoas, conviveram com algum grau de insegurança alimentar (quando uma família não tem acesso a alimento) no final de 2020 e 9% deles vivenciaram insegurança alimentar grave, isto é, passaram fome, nos três meses anteriores ao período de coleta (dez/20). De acordo com os pesquisadores, o número encontrado de 19 milhões de brasileiros que passaram fome na pandemia, duas vezes maior do que foi registrado em 2009.

E antes que alguém diga, essa consequência não é das políticas de fechamento de comércio e serviços durante a pandemia. Antes da retirada abrupta dos governos de centroesquerda em 2016, que se inclinavam ao bem estar social, o Brasil chegou a índices ínfimos de insegurança alimentar, retirando o país do Mapa da Fome em 2014. O projeto Fome Zero produziu resultados muito bem sucedidos, tornando seu autor, o Brasil e os brasileiros exemplos no mundo. O retorno da fome se deu quando o mordomo fã da austeridade se tornou dono da mansão. Resultado: Brasil retorna ao Mapa da Fome em 2018 (9), ano que se encerra com acefalia ascendente no Planalto Central, tornando previsível a profundeza do abismo. Daí, a chegada da Pandemia acelerou o processo.

Let it be. Deixe estar. O mercado se autorregula. É? Claro que não. Em situações normais não existe autorregulação, imagina em uma pandemia.

Ao contrário do que quer fazer crer o senso comum, impulsionado por formadores de opinião desinformados e por uma mídia sacana, a fome no Brasil não é problema de falta de alimentos. É de falta de acesso a alimentos. Falta de segurança alimentar. Falta de renda mínima.

A fome é causada pela falta de política pública. É preciso atuação estatal na manutenção acessível dos preços dos alimentos básicos, assim como na geração de renda e emprego, dizimando a desigualdade social. Empoderar a classe pobre, para que ela tenha acesso aos bens de consumo. Na Pandemia, é auxílio emergencial, para que aquele impossibilitado de trabalhar consiga pagar seu alimento e de sua família. É apoio ao empresário que precisar fechar as portas para se proteger e proteger funcionários e clientes. O Estado tem esse dever. Afinal, assinou-se um contrato social pela segurança e bem estar de todos.

Por fim, eu não posso deixar de mencionar a louvável atuação da sociedade civil, organizando-se para arrecadar alimentos e leva-los até os necessitados. Há diversas ações em andamento, inclusive, este sindicato delas participa ativamente. E, por isso, merece ser parabenizado. Assim como eu que ajudo, assim como tu que estás lendo ajuda. Contudo, essa responsabilidade é do governo e não podemos deixar de falar de que é o governo o responsável pela situação na qual vivemos e é ele quem deve agir.

Seguindo nesse passo desgovernado, fome e miséria crescentes farão também crescer a violência. Estamos num calhambeque sem motorista, ladeira abaixo e sem freios.

A Fome é Medusa, a impetuosa. A Miséria é Esteno, aquela que oprime. E a Violência, Euríale, a que está ao largo. Como as irmãs Górgonas, fome, miséria e violência são filhas de monstros.

NOTAS:
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/03/31/brasil-registra-quase-4-mil-mortes-por-covid-no-dia-e-fecha-pior-mes-da-pandemia-com-668-mil-obitos.ghtml
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/04/25/abril-ja-e-o-mes-com-mais-mortes-por-covid-19-no-pais-desde-o-inicio-da-pandemia
https://www.correiodopovo.com.br/colunistas/taline-oppitz/para-que-a-gente-possa-salvar-a-economia-de-porto-alegre-diz-melo-1.576557
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/04/4917086-maioria-do-stf-autoriza-fechamento-de-igrejas-durante-a-pandemia.html
Refiro-me ao Cristianismo, pois foi boa parte desse segmento que pressionou pela abertura, de forma alguma quero insinuar que somente essa vertente religiosa exista.
https://www.istoedinheiro.com.br/medicos-alertam-que-sindrome-pos-covid-atinge-14-milhao-de-brasileiros/
https://oglobo.globo.com/economia/ministerio-da-economia-diz-que-censo-de-2021-esta-cancelado-24985108
http://olheparaafome.com.br/
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/09/17/ibge-confirma-que-pas-voltou-ao-mapa-da-fome-em-2018-diz-pesquisador.ghtml