Tribuna: Cidadão Sim. Um Dia.

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Tribuna: Cidadão Sim. Um Dia.
Por Nadia Latosinski, assessora na Promotoria de Justiça de Tramandaí

Em algum momento da nossa recente história parece que foi concedida a autorização para ser podre. Como se esgotos em nossas mentes e bocas fossem abertos. As pessoas têm se sentido no direito de falar o que pensam, em ofender e dentro dessa ofensa exprimir o que elas têm de pior. Nos últimos meses vimos em vídeos circulando pelas redes sociais, ricos humilhando trabalhadores; servidor público do alto escalão da magistratura berrando que a lei não é para ele e que um guarda municipal não pode exigir desse ser soberano que a norma seja cumprida; e o que chamou mais minha atenção pelo significado da frase: um engenheiro não ser cidadão, mas engenheiro formado, o que na visão do Leblon seria mais que cidadão.

Sim. Isso acontece todo dia, toda hora, e há muito tempo. Mas parece que agora está liberado. Talvez porque o atual chefe da Nação tenha comportamentos desses ou talvez porque, como ouvi há algum tempo de um familiar, “o governo [do PT] tirou das pessoas o direito (sic) de serem preconceituosas e de falar o que pensam”. Quando a situação ficou desenfreada, então, não sei. Mas o fato é que atualmente o desrespeito ao ser humano está escancarado. E foi normalizado. Até autorizado.

Há diversos pensadores que imaginam o ser humano como “bom por natureza”. Eu nunca consegui compreender assim. Acho que temos dentro de nós um emaranhado de conflitos entre os polos do bem e do mal. Ou dois seres minúsculos, um anjinho e um diabinho, um em cada ouvido, como sugeriam os desenhos animados na minha infância.

O que nos diferencia, penso eu, é a capacidade de censura. Sim, podemos pensar coisas ruins, preconceituosas, asquerosas sobre os outros e as coisas, mas temos a total possibilidade de nos controlar e nortear nossas narrativas e ações. É possível num momento de fúria pensarmos o pior sobre outro ser, mas sabemos que dizer e agir conforme esse pensamento não é justo, não é correto e nem saudável. E paramos. Respiramos. Mudamos o rumo dos nossos pensamentos.

O que chamo de censura aqui também é saber que se eu estacionar na fila dupla, por mais rapidinho que seja, eu estarei atrapalhando outros seres humanos que precisam se locomover; se eu furar uma fila, outras pessoas também com pressa – e que já aguardavam sua vez – serão prejudicadas; ou, nos dias atuais, se eu não usar máscara eu poderei expelir um vírus, que em mim pode não estar fazendo nada ou fazer um resfriadinho, uma gripezinha, mas em outro ser humano poderá matá-lo. É saber que todo e qualquer ser tem os mesmos direitos e obrigações que eu tenho. Dinheiro, cor de pele, etnia, religião, profissão, currículo lattes não faz eu ser melhor que ninguém. Nada faz. Enfim, é não fazer com o outro aquilo que eu não quero que seja feito comigo. Regra de ouro essa, né?

Quando externamos nosso pensamento, sendo na fala ou na ação, esse ato não é mais só nosso. É do mundo. E isso implica adentrar a esfera do outro. A gente aprende isso bem cedo, mas parece que algumas pessoas perderam as aulas do Jardim da Infância. Não pode xingar, gritar com a professora ou com o coleguinha, não pode beliscar, tem de respeitar, pedir licença e por favor, fazer fila, dizer obrigada. Regras básicas de civilização que em algum momento entre Jardim da Infância e promoção para segunda instância o homem perdeu, ou entre Jardim da Infância e a formatura de Engenharia, ou a diplomação de Presidente.

E pensar que nós fazíamos essas coisas rindo e cantando de mãos dadas com os coleguinhas... Até tínhamos os coleguinhas preferidos, mas pegávamos a mão de qualquer um, sabendo que todos éramos iguais e merecedores das mesmas chances, do mesmo afeto e do mesmo respeito.

Sem o respeito ao próximo, sem o controle das nossas emoções espúrias, não chegamos nem perto da cidadania, da verdadeira compreensão de todos nós como partes de um grande corpo político, onde há direitos e deveres, havendo regras básicas para conduzir nossas ações e nossos propósitos dentro da sociedade. Esse passo evolutivo só surge após assimilar o Jardim da Infância.

Por isso, ele não é cidadão, é só um desembargador. Não é cidadão, é só um engenheiro. Não é cidadão, só está Presidente da República.