Sovando um pãozinho: reflexões sobre o slow work na quarentena

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Sovando um pãozinho: reflexões sobre o slow work na quarentena
Por Silvia Generali da Costa, psicóloga e assessora em saúde do SIMPE-RS

Estou em casa e, de repente, acabou o pão. Gritaria geral. A família suporta tudo, menos a falta de pão e de papel higiênico. Sair em meio ao vírus circulante e lavar mais uma muda de roupas na volta nunca me parece uma alternativa agradável. O plano B? Fazer pão caseiro. A receita dizia: pão simples, fácil e delicioso. Por que não? Ainda teria o bônus de me exibir como uma dona de casa habilidosa, acariciando meu narcisismo doméstico.

Coloquei literalmente a mão na massa. O primeiro segredo do pão-maravilha é sovar a massa. São vinte minutos que parecem 20 horas e que fazem os braços doer. Depois, o segundo segredo: deixar a massa descansar por uma hora. Mais farinha, cortar, amoldar e deixar descansar por mais 45 minutos. Quem precisava de descanso, o pão ou eu? – pensei. Depois o tempo de forno. Finalmente, depois de três horas, famintos, saboreamos o verdadeiro pão caseiro. Para mim, ficou uma iguaria dos deuses, meu bebê enfarinhado, meu sucesso, minha realização pessoal. Não sei se estava de fato bom ou simplesmente fiz valer o ditado “a fome é o melhor tempero”. O que sei é que a experiência me fez refletir.

O psicólogo húngaro Mihaly Csikszentmihalyi, internacionalmente conhecido pela teoria do Flow, afirma em suas obras que a felicidade requer esforço. Ele distingue felicidade de prazer, sendo que o prazer é fugidio e dele pouco resta após alguns minutos, e a felicidade permanece – resultado de um processo de esforço – aprendizagem – aumento da complexidade do ser.

Csikszentmihalyi exemplifica esta diferença com o simples ato de matar a fome. Podemos comer um hambúrguer num fast food e teremos prazer, mas logo em seguida seremos exatamente os mesmos. Não teremos uma sensação prazerosa duradoura. Ao contrário, podemos ir a um mercado, escolher ingredientes selecionados, desenvolver uma nova receita e chamar os amigos para degustar o prato. Ao final, teremos uma experiência sensorial inédita, desenvolveremos nossa capacidade de aprendizagem, estreitaremos laços com os amigos e nos sentiremos realizados com nossa conquista. Nosso potencial humano terá sido ainda mais desenvolvido e é isto o que traz enriquecimento psíquico e, consequentemente, a felicidade.

Não fosse a pandemia, creio que eu jamais me arriscaria a investir três horas na feitura de simples pãezinhos. Teria ido à padaria e comprado o lanche da tarde pronto. Percebo que este é um estilo de vida bem diferente, no qual a pressa e o imediatismo são substituídos pelo esforço e pela complexidade e, quem sabe, nos abra um caminho para a felicidade.

Carl Honoré, o fundador do Movimento Slow, defende este modo de vida. Para os seus seguidores, a rapidez não nos permite apreciar o caminho (o que para Csikszentmihalyi também é um modo de encontrar a felicidade). Na correria diária perdemos a chance de apreciar verdadeiramente as coisas e acabamos nos desconectando da natureza, dos outros e de nós mesmos. Perdemos essência e os meios de sermos felizes. Assim, não é à toa que existem tantas pessoas tristes, solitárias e distanciadas do sentido de suas vidas no mundo veloz atual.

Um amigo agricultor me dizia que damos valor ao que comemos quando sabemos o esforço do plantio e da colheita e respeitamos toda a sabedoria envolvida na agricultura familiar. É o que nos faz saborear cada alimento.

Não estou aqui sugerindo que larguemos tudo e nos mudemos para um sítio para tirar da terra nosso sustento. Mas a pandemia pode nos ensinar a diminuir o ritmo e prestar mais atenção àquilo que comemos, aquilo que sentimos, como passamos nosso tempo, e o que nos resta ao final de cada esforço realizado: a sensação de que não fizemos o suficiente ou a realização por termos posto algo de nós naquilo que produzimos – nossa engenhosidade, nosso tempo, nossa força, nosso amor? Vale a pena correr tanto e não apreciar a paisagem? Vamos pensar, agora que temos tempo.