Crônica: Não podemos ter medo de ter medo

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Crônica: Não podemos ter medo de ter medo
Por Silvia Generali da Costa, psicóloga e assessora em Saúde do SIMPE-RS

Tenho acompanhado Diários de Quarentena nas redes sociais onde são postados dias maravilhosos, com a descoberta de talentos insuspeitos na culinária, um feliz e próximo convívio com os filhos, um estreitamento de laços com o marido ou a esposa, o curtir da casa, a possibilidade de parar para refletir. Quase ouço Louis Armstrong cantando What a Wonderful World. Como entoamos modernamente o mantra da resiliência, qualquer problema, independente do tamanho, urgência ou gravidade não é de fato um grande problema digno de nos atemorizar, deprimir ou fazer adoecer, desde que permaneçamos positivos.

Fico feliz por aqueles que aprenderam a fazer um creme brulle perfeito, por aqueles que conseguiram dançar zumba em três lições fáceis e pelos que se tornaram fluentes em Mandarim. Mas, a reflexão desta semana é: em meio à perfeição das grandes descobertas e aprendizagens, onde se escondem a dor e o medo?

Como em textos anteriores, volto a uma das minhas autoras preferidas, Barbara Ehrenreich, desta vez com seu livro Sorria: como a promoção incansável do pensamento positivo enfraqueceu a América, publicado no Brasil em 2013 pela Editora Record. Neste livro, a autora questiona o poder do pensamento positivo e a crença de que se nos mantivermos “para cima”, atrairemos somente coisas boas e prosperaremos. Acrescenta que o manter-se positivo geralmente inclui “afastar pessoas negativas”.

A ideia discutida por Ehrenreich é de que podemos facilmente escorregar da positividade para o que Freud chamou de pensamento mágico, algo como esperar que a realidade se transforme sem uma causa concreta ou sem uma ação identificável, simplesmente porque assim o desejamos.

Quero destacar que não tenho nada contra as tentativas de muitas pessoas de se manterem “para cima”. Alguns farão isto com exercícios, outros com leitura, outros com meditação ou com encontros virtuais com amigos. O que quero alertar é que a ideia de culpabilizarmos um indivíduo que não “consegue” ser “positivo”, se constitui em um perigo potencial Ora, se além de infelizes, nos culparmos por estarmos sendo infelizes, a situação só piora. Se nos depreciarmos por estarmos sentindo medo quando “deveríamos estar reagindo”, nosso medo só aumenta.

Podemos estar amedrontados e/ou infelizes por um dado de realidade: estamos enfrentando uma situação difícil e perigosa. Admitir o medo é o primeiro passo para que nos sintamos melhor, e não o contrário. O medo existe para nos sinalizar cuidado, para que possamos agir com cautela, recuar se necessário, nos recolhermos se preciso for. O medo é um aviso, assim como a dor.
Quando eu era criança o professor de ciências perguntou para a turma quem era a melhor amiga do homem. A cadela - respondeu um aluno mais jocoso. A mãe - arriscou outro. Não, era a dor. Porque sem ela, não saberíamos que estamos mal, que precisamos de ajuda e, assim, não nos cuidaríamos.

E se não tivéssemos medo? Em quantas situações perigosas nos meteríamos? O medo pode ser reflexo de um perigo real, como um vírus que se espalha facilmente e, neste caso específico, é o medo que nos mantêm em casa protegidos e nos faz usar máscaras. Mas também é o medo derivado de situações concretas que desperta temores mais enraizados, como o da solidão e o da impotência, por exemplo. Ou ainda, o medo do real desperta os medos imaginários, como de outras doenças que não as doenças relacionadas à pandemia.

Não importa do que se tem medo e o que nos dói. Temos direito a sentir dor e medo. Assumir o medo e compartilhar sentimentos com pessoas de confiança ainda é a forma mais viável de enfrentamento. E se o medo ou a dor se tornarem paralisantes e insuportáveis, faça como se tivesse uma insuportável dor de estômago: procure ajuda especializada.